Quando pensamos em culinária e em chefes de cozinha, pode ser que alguém considere que esse é um fenômeno da modernidade, intensificado nas novas gerações principalmente com o advento recente das mídias que deram fama a tantos empreendimentos.
Surgimento dos chefs
Acontece que chefs são tão antigos quanto a culinária. Onde houvesse fome e alimento, haveria logo quem se destacasse como aquela pessoa mais experiente no preparo dos alimentos. Assim, nada mais natural que nas civilizações mais antigas já existissem o que hoje chamamos de chef gastronômico. Assim foi no Império Romano.
O primeiro chef da história
Marco Gávio Apício é uma figura icônica na história da culinária italiana, cujas contribuições à gastronomia romana e, por extensão, à culinária italiana, perduram até os dias atuais. Nascido em 25 a.C., Apício viveu durante os reinados dos Imperadores Augusto e Tibério, e foi um chef, gastrônomo e escritor cuja paixão pela comida e seu desejo de aperfeiçoar a culinária romana o tornaram uma figura lendária na Roma Antiga.
Registros históricos
Sua obra mais notável, “De Re Coquinaria” (Sobre a Arte Culinária), é um tesouro histórico, uma das fontes mais importantes sobre a culinária romana antiga, que chegou aos dias de hoje graças a um manuscrito do século V. O livro aparenta ser uma compilação de acréscimos a partir de um texto original, atribuído a Apício.
O manuscrito, depois de recuperado, passou por transcrições de monges medievais, que possibilitaram a reedição do texto, para um novo alcance no mundo medieval. O livro contém uma variedade surpreendente de receitas – 490 receitas transcritas pelos monges entre o século XV e XVI – que abrangem desde pratos principais, como guisados de carne, até sobremesas elaboradas, como bolos e tortas. Cada receita é acompanhada por detalhes sobre os ingredientes necessários e instruções sobre como preparar os pratos – em alguns casos, Apício descreve inclusive dicas de como utilizar os ingredientes certos para a melhor conservação do alimento, aumentando sua durabilidade. Essas receitas foram preservadas e forneceram uma base valiosa para a compreensão da culinária romana.
As contribuições históricas de Apício à culinária italiana podem ser entendidas também pelo ponto de vista da padronização. Suas receitas consolidaram uma ideia de se qualificar uma repetição rigorosa de técnicas, tornando as receitas mais acessíveis e compreensíveis para os cozinheiros de sua época. Isso, naturalmente, contribuiu muito para o desenvolvimento da gastronomia romana.
Receitas gourmet
Além disso, era grande o seu enfoque na qualidade dos ingredientes. Apício enfatizou a importância de se avaliar bem os ingredientes que deveriam ser escolhidos para cada finalidade culinária – uma característica distintiva da culinária italiana, que muitas vezes envolve a seleção de frutos de determinadas regiões para o preparo de uma receita tradicional. Ele ajudou a promover a ideia de que a qualidade dos ingredientes seria essencial para a excelência culinária.
Seu livro de receitas incluía também uma ampla gama de pratos que refletiam a diversidade da Roma Antiga. Isso ajudou a registrar na História a influência culinária das diferentes culturas e regiões que existiam dentro do Império Romano.
E, por outro lado, além dos registros documentais, Apício demonstrou sobretudo criatividade em suas receitas, muitas vezes incorporando ingredientes exóticos e especiarias em suas preparações. Essa abordagem inovadora influenciou a cultura culinária romana e italiana.
Influências na culinária italiana
Não é possível compreender os dias de hoje da culinária italiana apenas pelas primeiras influências do chef romano. Por se tratar de uma culinária milenar, é claro que encontraremos muitas outras influências determinantes. As tradições da culinária italiana moderna se consolidaram com outras evoluções e influências culturais nos 2 mil anos que se passaram desde a época de Apício. Mas as contribuições atemporais do chef romano à gastronomia ainda são visíveis nas práticas culinárias italianas contemporâneas, como sua influência na valorização dos ingredientes sazonais, frescos e de alta qualidade, na criatividade e na paixão pela culinária. Na cozinha italiana, muitos ingredientes são valorizados além da ideia de um prato principal (primo ou secondo piatto). Vem daí a apreciação por uma alimentação em etapas, que destaque sabores diversos e a qualidade de cada preparo.
Os séculos que se seguiram ao tempo de Apício trouxeram outras tantas influências, desde o período das invasões bárbaras, até o Renascimento. E cada região da Itália apresenta suas próprias características culinárias, com diferenças que apontam influências também dos países que estão nas fronteiras, como a França e a Áustria. Mas há uma identidade italiana construída ao longo do tempo que evidencia a contribuição cultural-gastronômica de cada novo convívio que as terras itálicas conheceram. A ideia, por exemplo, de que uma refeição tipicamente italiana envolve um grande prato de antepasto, com frios, leguminosas, cogumelos e anchovas, é uma mistura de costumes que datam de Apício, mas que também se mesclaram às influências mediterrâneas, como a dos Árabes.
Os banquetes, que no passado eram uma realidade apenas da nobreza (enquanto a população contentava-se com a simplicidade da chamada tríade mediterrânea: azeitonas, vinho e pão), foram aos poucos ganhando mais mesas, com uma dieta mediterrânea composta por vegetais, legumes e queijos.
Mais tarde, no século IX, quando a ilha da Sicília foi dominada pelos árabes, a culinária também ganhou influências que caracterizam muito do que encontramos hoje, como frutas secas e especiarias.
Na Renascença, a culinária continuou ganhando especificidades italianas em sua tradição.
Um chef de grande impacto desse período foi Cristoforo de Messibugo, nascido no século XV, cozinheiro e mordomo da Casa d’Este, em Ferrara. (A família Este ou Casa d’Este era o ramo italiano de uma importante dinastia europeia de príncipes.) Cristofo também escreveu um livro de receitas, intitulado “Banchetti, composizioni di vivande e apparecchio generale”, publicado postumamente em 1549, e que tem como foco os preparadores de festas principescas, fornecendo descrições detalhadas dos menus dos seus banquetes oficiais na corte Este. Além de listar receitas, também discute logística, decoração e equipamentos de cozinha.
Marco Gávio Apício pode não ter feito tudo em seu tempo, nem jamais cogitou a possibilidade de alguns preparos elaborados que surgiram depois de seu tempo, nas mãos de outros inúmeros chefs de grande impacto, mas seu legado o tornou ao longo dos séculos uma referência importantíssima para se entender a culinária como um bem cultural, uma herança respeitosa e essencial para a identidade de um povo. Por essas razões, podemos estudar a culinária italiana por diversos ângulos, conhecendo mil outras influências, mas um denominador comum é o reencontro quase arqueológico com as receitas selecionadas e registradas por Apício. Seu legado é uma lembrança de como a paixão pela comida pode transcender o tempo e continuar a inspirar amantes da culinária em todo o mundo.
E você, consegue imaginar a cultura italiana sem a gastronomia?
Agora que abrimos o apetite e aguçamos a curiosidade, aqui vão três vídeos valiosos sobre o tema: duas lives produzidas pelo Prof. Vinicio e uma visita que o Prof. Darius fez a um restaurante, onde pudemos aprender sobre o preparo de alguns pratos tradicionais com o chef Rafael Lorenti, do restaurante Basilicata, uma casa italiana com mais de 100 anos em São Paulo!
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